10 abril 2010

O ARQUIVISTA

Um talento inato. Situações, coisas ou pessoas: nada escapava ao seu ímpeto de dar nomes e colocar tudo em seu lugar. Eram tantas as gavetas que sobrava pouco espaço para si.
Não perdia tempo, nem se arriscava em especulações; assim que o objeto entrava em foco, colava uma etiqueta. Pronto: nunca mais veria aquilo com outros olhos.
De alguma forma, as definições sumárias roubavam do objeto a sua novidade, o que lhe dava uma sensação de controle e segurança até o próximo confronto.
Sabia que essa atitude estreitava as possibilidades e amesquinhava a vida, mas, por outro lado, o livrava de experiências potencialmente ameaçadoras.
Caso lhe faltassem, acrescentava às palavras um número de ordem, tais como “feio3, excelente9, absurdo36 ou imperdível45”. Ao dar com algo que não pudesse catalogar imediatamente, colava um rótulo como “louco” ou “esquisito”.
Após o rito sumário, um sorriso incontido pairava sobre o mundo e avançava a passos largos.
Para o menor sinal de dúvida, óculos escuros: “– Não sei aonde vou, mas tenho pressa. Eu faço e desfaço, sou o cara que move e transforma coisas em outras coisas”.
E o homem fez história: adeptos do arquivismo despontaram em toda parte, alcançando níveis extraordinários de projeção social e conforto – ao que todos se apressaram em chamar de "qualidade de vida".
Os problemas afloraram quando se tornou inviável rotular tantos personagens, sentimentos, relacionamentos e produtos cada vez mais efêmeros – na verdade, tudo virou produto. Na confusão das prateleiras nada mais era real. Passou-se a consumir – ou “viver”, segundo os arquivistas publicitários – virtualmente.
Enquanto isso, a Vida – com sua generosidade e permanente transformação – foi sendo deixada, literalmente, de fora. Aquela sensação de segurança escasseou. Já não havia capacidade de assimilação no “mundo das dez mil coisas”.
Foi então que, de repente, todos passaram a olhar com mais atenção pelas janelas: lá fora, tudo parecia mais pleno e feliz: os beija-flores, as flores, as tempestades, as palmeiras ao vento e até os cães de guarda.
Uma onda contemplativa ganha forma: “– Onde perdemos o fio da meada? Vamos tentar parar o trem que já anda por conta própria e fincar os pés na terra! Ah, a Terra... ainda haverá lírios no campo?”
E o arquivismo, finalmente, tropeçou nas etiquetas:
“– Talvez a Vida não precise de novas palavras, nem de velhas, e apenas siga seu curso, no Silêncio, com ou sem os arquivistas".