21 setembro 2007

CIDADÃO

Por toda parte, percebemos a insatisfação crescente acerca dos modelos de organização sócio-econômica e desenvolvimento. Pode-se dizer que chegamos ao ápice da valorização do consumo e da matéria, em detrimento do espírito humano e seus mais genuínos anseios de realização. Quando passamos a acreditar que o “ter” justifica todos os sacrifícios, inclusive aqueles que terminam por soterrar o “ser” individual e coletivo, acreditamos também que não há um manancial de coisas ou condições de sobrevivência suficiente para todos e que, portanto, precisamos considerar o semelhante como um concorrente em potencial.

Desta forma, a propriedade individual foi adquirindo uma dimensão extremamente mais reconhecida, buscada e valorizada do que os chamados bens de uso comum. Olhamos para a cidade e percebemos que o convívio nas ruas e praças vem sendo substituído pelo “lazer de consumo” dos shopping-centers, enquanto o parque infantil perde espaço para a TV e o videogame.

Mesmo sem considerarmos a idéia de que todas as coisas existentes – notadamente as naturais – pertencem a todos os habitantes do planeta, podemos constatar que o espaço público, aquilo que é de todos, vem perdendo significância no inconsciente coletivo, principalmente se é percebido como algo a que ninguém pertence ou ainda como propriedade do Poder Público estabelecido.

A própria nomenclatura das ruas e praças tem contribuído de alguma forma para reforçar este conceito. Ao longo da história, as evocações poéticas e peculiares da cultura local foram sumariamente substituídas pela personalização de eventos oficiais, notadamente os de cunho bélico e político.

A título de ilustração, podemos citar alguns espaços públicos de Florianópolis, que um dia foram conhecidos – e reconhecidos – como: Cais da Liberdade; Rua do Segredo e Rua das Flores, e que posteriormente receberam as seguintes denominações: Rua Antonio Luz – em homenagem a um “fiscal do consumo”; Rua Bento Gonçalves – militar da Revolução Farroupilha e Rua Pedro Ivo – político e herói pernambucano. O exemplo mais pungente dessa prática ocorreu em 1894, quando o município deixa de se chamar Desterro para reverenciar o militar alagoano Floriano Vieira Peixoto, o segundo Presidente da República, que deixou por aqui um legado de violência e assassinatos contra cidadãos que se opuseram ao regime.

Quando ideologias como esta, alienantes do exercício da cidadania, passam a ser aceitas e assimiladas pela sociedade, podemos dizer que, assim como na selva, temos no embate social urbano dois grandes grupos em evidência: os predadores e os indiferentes, sendo que estes últimos, via de regra, assumem a condição de presas ou vítimas.

O primeiro grupo, o dos predadores, perpetua os ideais egoísticos e competitivos e nos propõe: pegue a sua parte o quanto antes, pois, como se dizia nas praias e planícies desta ilha, “farinha pouca, meu pirão primeiro!”. Então abrimos as janelas e vemos nossas praias, dunas, encostas e manguezais ocupados por invasões dos mais diversos tipos: palacetes e barracos, favelas e hotéis de luxo, centros comerciais e quiosques, esgotos a céu aberto e lixo de toda espécie. Ao andarmos pelas ruas, esbarramos em incontáveis “ambulantes” – sempre fixos – e somos agredidos por painéis publicitários gigantescos com suas promoções "imperdíveis”.

Como combustível desse processo autofágico, anuncia-se dinheiro em postes que, por sua vez, também ocupam uma boa parte da exígua área destinada ao pedestre. Mais adiante, somos contemplados por toldos de cobertura, mesas, cocôs de cachorro de madame e os indefectíveis desníveis que adaptam o passeio público que, afinal, “não é de ninguém”, à entrada de garagem, esta sim, propriedade intocável do “doutor fulano”.

O segundo grande grupo em evidência, o dos indiferentes, mesmo não tendo o ímpeto de apropriar-se ou invadir o espaço público, considera-o como “coisa do governo” – problema que não é seu –, ou seja, alguém que não ele próprio deve ocupar-se de criar, manter e zelar pelas áreas comuns. Essa postura, que pela passividade alimenta a primeira, isenta o cidadão de qualquer responsabilidade pelo resultado das intervenções públicas ou privadas.

Como uma das conseqüências, temos obras arquitetônicas, que diferentemente do que ocorria no passado, não são concebidas ou inseridas como parte do cenário urbano, mas sim como elementos isolados, fruto da inspiração e preferência estética de projetistas e empreendedores. A cidade torna-se um aglomerado de obras desvinculadas entre si e sem qualquer comprometimento com a harmonia do entorno.

Se considerarmos que a urbe sempre representou muito mais que um simples agrupamento edificado, com seus múltiplos usos e interligações viárias, concluímos que o espaço público é o elemento e o meio que justifica a própria existência da cidade. Não é por acaso que a convivência e as trocas sociais se dão, fundamentalmente, nos lugares a que todos acessam e não no recesso dos lares e demais ambientes privados.

A legislação urbanística, por si só, não tem demonstrado eficiência e certamente não garantirá no futuro a qualificação e preservação de nossas áreas públicas. Acredito que um processo educativo e participativo consistente poderá, em médio prazo, realizar avanços efetivos.

Mudanças urgentes e necessárias não passarão por fórmulas científicas ou planos milagrosos, mas por uma elevação do nível de consciência. Este é o milagre possível a partir da experiência vivida, a partir da disposição e da entrega de todos e de cada um.

Quando o indivíduo é tocado por uma nova idéia e incorpora em si mesmo uma mudança de conceitos e atitudes, isso é percebido gradativamente em sua moradia, rua, bairro e finalmente na cidade como um todo.

Traduzindo em uma frase: A cidade será o melhor de nós!